A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito porque tem sono atrasado. A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.
(Do livro “Eu sei, mas não devia”, Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pág. 09.)
Marina Colasanti
Outras frases de Marina Colasanti
+ Preciso que um barco atravesse o mar lá longe para sair dessa cadeira para esquecer esse computador e ter olhos de sal boca de peixe e o vento frio batendo nas escamas. - Marina Colasanti
+ Assim como deixamos abertas as portas e disponíveis os sentimentos para receber a chegada de um amor, devemos deixar livre a passagem para que serenamente se vá quando chegada a hora. - Marina Colasanti
+ A Paixão da Sua Vida Amava a morte Mas não era correspondido Tomou veneno Atirou-se de pontes Aspirou gás Ela sempre ela o rejeitava Recusando-lhe o abraço Quando finalmente desistiu da paixão Entregando-se à vida A morte, enciumada Estourou-lhe o peito - Marina Colasanti
+ Ás seis da tarde as mulheres choravam no banheiro. Não choravam por isso ou por aquilo choravam porque o pranto subia garganta acima mesmo se os filhos cresciam com boa saúde se havia comida no fogo e se o marido lhes dava do bom e do melhor choravam porque no céu além do basculante o dia se punha porque uma ânsia uma dor uma gastura era só o que sobrava dos seus sonhos. Agora às seis da tarde as mulheres regressam do trabalho o dia se põe os filhos crescem o fogo espera e elas não podem não querem chorar na condução - Marina Colasanti
+ Crianças em qualquer tempo Quando penso em crianças do terceiro milênio, as vejo ainda maturadas num ventre de mulher, apesar das novas possibilidades com que o futuro nos acena [...] As maneiras através das quais essas crianças aprenderão a ler e escrever não tem, para mim, importância maior. Que seja num caderno ou num computador, diante de uma mesa ou graças a um sofisticado equipamento de pulso, o que eu vejo são seres em crescimento abrindo os olhos maravilhados sobre o saber. O universo socioeconômico de uma criança amazônica criada à beira do Rio Negro, que em dia de festa come pato em vez de galinha, porque galinhas não nadam e há muito mais água do que terra ao redor das casas dos Igarapés é bem diferente daquele de uma criança de São Paulo, levada no inverno, duas vezes por mês ao médico para fazer nebulizações capazes de minimizar em seus pulmões o efeito da poluição. Essas diferenças existem hoje e existirão ainda que de outras formas, no terceiro milênio. Mas hoje como amanhã, as duas crianças terão medo do escuro [...] As crianças do terceiro milênio, quando penso nelas, são frágeis e bonitas. O que vestem se linho ou plástico, não me interessa. Me interessa que possam ser de todas as cores, louras e morenas, de olhos puxados ou lábios grossos, de cabelos escorridos ou pixaim, e que assim possam viver, multirraciais, no mesmo bairro. Confesso que me enternece a idéia de que, pelo menos no início dessa nova era ainda haverá avós que ensinarão suas netas a costurar roupinhas de boneca. Mas tenho certeza de que mesmo que no futuro venhamos a nos alimentar somente de pílulas, haverá crianças fazendo pílulas de barro ou de cola sintética para brincar de comida de mentirinha, assim como brincaram as crianças da Roma clássica ou as do antigo Egito. E isso não porque a brincadeira de comidinha seja uma tradição transmitida de geração em geração, mas porque através da mimese se faz o aprendizado e a primeira tarefa de todas as crianças em qualquer tempo e em qualquer lugar, é, e sempre será, aprender a viver. - Marina Colasanti