Ele coloca o vestido rosa, penteia o cabelo loiro com brilho de plástico, faz biquinho com boca de coração. E vai para a vitrine. Sorri pra mim atrás do vidro com cadeado e alarme antifurto. Eu automaticamente viro uma garotinha de 5 anos que precisa brincar com aquela boneca, só com aquela boneca. Não quero saber das que falam “eu te amo”, abraçam, têm carro importado, vêm com anel de brilhantes. Só quero a mesma boneca de sempre. Simples, descalça, manual e eternamente sem preço. Negocio, negocio, e ganho uma regalia: segurar a boneca com caixa e tudo, por cinco minutos. Abraço a boneca enjaulada, ela pisca seus grandes cílios de fio de náilon pra mim. Quero furar o plástico, rasgar o papelão, libertar seu pescoço e seus pés do arame farpado. Quero arrumar o cílio torto da boneca, apertar seus bracinhos de borracha com covinha até eles esquentarem. Mas só restam dois minutos e eu os gasto abraçando meu desejo o máximo que posso. Pra ver se tanto amor derrete as cinco embalagens que ela traz em volta do seu peito oco. Só me resta um minuto e então, mais uma vez, caminho para a vitrine. Sou uma garotinha comportada, quem diria. E você achando que eu seria uma dessas mimadas malucas que se jogam no chão, se debatem e choram até conseguir levar a boneca pra casa. Dez, nove, oito… faço carinho na caixa que diz em um splash pink “só para demonstração, não disponível para venda”. Sete, seis, cinco… devolvo o brinquedo para seu lugar de origem enquanto tento não me desfazer demais de mim. Quatro… penso em perguntar mais uma vez para o dono da loja se ela não está realmente à venda. Três… me lembro de que já não tenho mais forças para ouvir “não, querida, desculpa” e guardo todas as minhas palavras e pedidos no coração. Dois… lembro que meu coração já está cheio e não cabe mais nada. Derramo um pouco minhas palavras, mas nada que chegue a molhar sua proteção. Um. Olho uma última vez para minha pureza e juro que é a última vez que vou deixar minha ingenuidade me machucar tanto. Saio da sua loja e volto a ser uma menininha sozinha, caminhando pelas ruas, odiando as vitrines que não têm você. Você volta para a sua vitrine, esperando a menininha chegar disposta a pagar qualquer valor, mesmo você insistindo que não tem nenhum. E assim seguimos. Até eu deixar de ser criança. Até eu aprender a gostar de homem ao invés de sofrer tanto por causa de uma boneca.
Tati Bernardi
Outras frases de Tati Bernardi
+ Aprendi a amar menos, o que foi uma pena, e aprendi a ser mais cínica com a vida, o que também foi uma pena, mas necessário. Viver pra sempre tão boba e perdida teria sido fatal. - Tati Bernardi
+ Sentir falta é diferente de sentir saudade. A saudade bate, agonia, estremece. A falta congela, chora, entristece. A saudade é a certeza que a pessoa vai voltar. A falta, é o querer ter de volta, mas saber que não vai ter. - Tati Bernardi
+ Essa vida viu, Zé. Pode ser boa que é uma coisa. Já chorei muito, já doeu muito esse coração. Mas agora tô, ó, tá vendo? De pedra. Nem pena do mundo eu consigo mais sentir. Minha pureza era linda, Zé, mas ninguém entendia ela, ninguém acolhia ela. Todo mundo só abusava dela. Agora ninguém mais abusa da minha alma pelo simples fato de que eu não tenho mais alma nenhuma. Já era, Zé. É isso que chamam de ser esperto? Nossa, então eu sou uma ninja. Bate aqui no meu peito, Zé? Sentiu o barulho de granito? Quebrou o braço, Zé? Desculpa! - Tati Bernardi
+ Eu nunca vou entender por que a gente continua voltando pra casa querendo ser de alguém, ainda que a gente esteja um ao lado do outro. Eu nunca vou entender por que você é exatamente o que eu quero, eu sou exatamente o que você quer, mas as nossas exatidões não funcionam numa conta de mais... Mas aí, daqui a uns dias... você vai me ligar. Querendo tomar aquele café de sempre, querendo me esconder como sempre, querendo me amar só enquanto você pode vulgarizar esse amor. Me querendo no escuro. E eu vou topar. Não porque seja uma idiota, não me dê valor ou não tenha nada melhor pra fazer. Apenas porque você me lembra o mistério da vida. Simplesmente porque é assim que a gente faz com a nossa própria existência: não entendemos nada, mas continuamos insistindo. - Tati Bernardi
+ Eles se amam. Todo mundo sabe mas ninguém acredita. Não conseguem ficar juntos. Simples. Complexo. Quase impossível. Ele continua vivendo sua vidinha idealizada e ela continua idealizando sua vidinha. Alguns dizem que isso jamais daria certo. Outros dizem que foram feitos um para o outro. Eles preferem não dizer nada. Preferem meias palavras e milhares de coisas não ditas. Ela quer atitudes, ele quer ela. Todas as noites ela pensa nele, e todas as manhãs ele pensa nela. E assim vão vivendo até quando a vontade de estar com o outro for maior do que os outros. Enquanto o mundo vive lá fora, dentro de cada um tem um pedaço do outro. E mesmo sorrindo por ai, cada um sabe a falta que o outro faz. Nunca mais se viram, nunca mais se tocaram e nunca mais serão os mesmos. É fácil porque os dias passam rápidos demais, é difícil porque o sentimento fica, vai ficando e permanece dentro deles. E todos os dias eles se perguntam o que fazer. E imaginam os abraços, as noites com dores nas costas esquecidas pelo primeiro sorriso do outro. E que no momento certo se reencontrem e que nada, nada seja por acaso. - Tati Bernardi