Leia um trecho"A missanga, todos a veem. Ninguém nota o fio que, em colar vistoso, vai compondo as missangas. Também assim é a voz do poeta: um fio de silêncio costurando o tempo."

“A vida é um colar. Eu dou o fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas as missangas.” É assim que o donjuanesco personagem do conto “O fio e as missangas” define a sua existência. Fazendo jus a essa delicada metáfora, cada uma das 29 histórias aqui agrupadas alia sua carga poética singular à forma abrangente do livro como um todo - vale dizer, ao colar em questão. Com um texto de intensidade ficcional e condensação formal raras na literatura contemporânea, Mia Couto demora-se em lirismos que a sua maestria de ourives da língua consegue extrair de uma escrita simples, calcada em grande parte na fala do homem da sua terra, Moçambique, um pouco à maneira de Guimarães Rosa, ídolo confesso do autor. A brevidade das pequenas tramas e sua aparente desimportância épica estão focadas na contemplação de situações, de personagens, ou simples estados de espírito plenos de significados implícitos, procedimento típico da poesia. Os neologismos do autor, a que os leitores já se habituaram, para além de mera experimentação formalista revelam-se chaves fundamentais de interpretação da leitura. Não por acaso, a maioria dos contos de O fio das missangas adentram com fina sensibilidade o universo feminino, dando voz e tessitura a almas condenadas à não-existência, ao esquecimento. Como objetos descartados, uma vez esgotado seu valor de uso, as mulheres são aqui equiparadas ora a uma saia velha, ora a um cesto de comida, ora, justamente, a um fio de missangas. “Agora, estou sentada olhando a saia rodada, a saia amarfanhosa, almarrotada. E parece que me sento sobre a minha própria vida”, diz a narradora de uma dessas belíssimas “missangas” literárias.


Mia Couto

Outras frases de Mia Couto

+ Quando já não havia outra tinta no mundo o poeta usou do seu próprio sangue. Não dispondo de papel, ele escreveu no próprio corpo. Assim, nasceu a voz, o rio em si mesmo ancorado. Como o sangue: sem voz nem nascente. - Mia Couto

+ Dormir com alguém é a intimidade maior. Não é fazer amor. Dormir, isso que é íntimo. Um homem dorme nos braços de mulher e sua alma se transfere de vez. Nunca mais ele encontra suas interioridades - Mia Couto

+ Esperto é o mar que, em vez da briga, prefere abraçar o rochedo. - Mia Couto

+ O importante não é a casa onde moramos. Mas onde, em nós, a casa mora. - Mia Couto

+ Para que as luzes do outro sejam percebidas por mim devo por bem apagar as minhas, no sentido de me tornar disponível para o outro. - Mia Couto

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