O cego e a guitarra
O ruído vário da rua Passa alto por mim que sigo. Vejo: cada coisa é sua Oiço: cada som é consigo.
Sou como a praia a que invade Um mar que torna a descer. Ah, nisto tudo a verdade É só eu ter que morrer.
Depois de eu cessar, o ruído. Não, não ajusto nada Ao meu conceito perdido Como uma flor na estrada.
Cheguei à janela Porque ouvi cantar. É um cego e a guitarra Que estão a chorar.
Ambos fazem pena, São uma coisa só Que anda pelo mundo A fazer ter dó.
Eu também sou um cego Cantando na estrada, A estrada é maior E não peço nada.
Do livro “Fernando Pessoa - Obra poética - Volume único”, Cia. José Aguilar Editora, Rio de Janeiro (RJ), 1972, págs 542/543. (Fonte: Projeto Releituras)
Fernando Pessoa
Outras frases de Fernando Pessoa
+ Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir — é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida. Apagar tudo do quadro de um dia para o outro, ser novo com cada nova madrugada, numa revirgindade perpétua da emoção — isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente somos. - Fernando Pessoa
+ XXXIX - O MISTÉRIO DAS COUSAS O mistério das cousas, onde está ele? Onde está ele que não aparece Pelo menos a mostrar-nos que é mistério? Que sabe o rio disso e que sabe a árvore? E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso? Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas, Rio como um regato que soa fresco numa pedra. Porque o único sentido oculto das cousas É elas não terem sentido oculto nenhum, É mais estranho do que todas as estranhezas E do que os sonhos de todos os poetas E os pensamentos de todos os filósofos, Que as cousas sejam realmente o que parecem ser E não haja nada que compreender. Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: — As cousas não têm significação: têm existência. As cousas são o único sentido oculto das cousas. - Fernando Pessoa
+ Vive a tua vida. Não sejas vivido por ela. - Fernando Pessoa
+ Viver não é necessário. Necessário é criar. - Fernando Pessoa
+ Vivo sempre no presente. O futuro, não o conheço. O passado, já o não tenho. - Fernando Pessoa