O Desaparecido
Tarde fria, e então eu me sinto um daqueles velhos poetas de antigamente que sentiam frio na alma quando a tarde estava fria, e então eu sinto uma saudade muito grande, uma saudade de noivo, e penso em ti devagar, bem devagar, com um bem-querer tão certo e limpo, tão fundo e bom que parece que estou te embalando dentro de mim.
Ah, que vontade de escrever bobagens bem meigas, bobagens para todo mundo me achar ridículo e talvez alguém pensar que na verdade estou aproveitando uma crônica muito antiga num dia sem assunto, uma crônica de rapaz; e, entretanto, eu hoje não me sinto rapaz, apenas um menino, com o amor teimoso de um menino, o amor burro e comprido de um menino lírico. Olho-me no espelho e percebo que estou envelhecendo rápida e definitivamente; com esses cabelos brancos parece que não vou morrer, apenas minha imagem vai-se apagando, vou ficando menos nítido, estou parecendo um desses clichês sempre feitos com fotografias antigas que os jornais publicam de um desaparecido que a família procura em vão.
Sim, eu sou um desaparecido cuja esmaecida, inútil foto se publica num canto de uma página interior de jornal, eu sou o irreconhecível, irrecuperável desaparecido que não aparecerá mais nunca, mas só tu sabes que em alguma distante esquina de uma não lembrada cidade estará de pé um homem perplexo, pensando em ti, pensando teimosamente, docemente em ti, meu amor.
Rubem Braga
Outras frases de Rubem Braga
+ Desejo a todos, no Ano-Novo, muitas virtudes e boas ações e alguns pecados agradáveis, excitantes, discretos e, principalmente, bem-sucedidos. - Rubem Braga
+ Não Ameis a Distância Em uma cidade há um milhão e meio de pessoas, em outra há outros milhões; e as cidades são tão longe uma da outra que nesta é verão quando naquela é inverno. Em cada uma dessas cidades há uma pessoa, e essas pessoas tão distantes acaso pensareis que podem cultivar em segredo, como plantinha de estufa, um amor a distância? Andam em ruas tão diferentes e passam o dia falando línguas diversas; cada uma tem em torno de si uma presença constante e inumerável de olhos, vozes, notícias. Não se telefonam mais; é tão caro e demorado e tão ruim e além disso, que se diriam? Escrevem-se. Mas uma carta leva dias para chegar; ainda que venha vibrando, cálida, cheia de sentimento, quem sabe se no momento em que é lida já não poderia ter sido escrita? A carta não diz o que a outra pessoa está sentindo, diz o que sentiu a semana passada... e as semanas passam de maneira assustadora os domingos se precipitam mal começam as noites de sábado, as segundas retornam com veemência gritando - "outra semana!" e as quartas já tem um gosto de sexta, e o abril de de-já-hoje é mudado em agosto... Sim, há uma frase na carta cheia de calor, cheia de luz; mas a vida presente é traiçoeira e os astrônomos não dizem que muitas vez ficamos como patetas a ver uma linda estrela jurando pela sua existência - e no entanto há séculos ela se apagou na escuridão do caos, sua luz é que custou a fazer a viagem? Direis que não importa a estrela em si mesma, e sim a luz que ela nos manda; e eu vos direi: amai para entendê-las! Ao que ama o que lhe importa não é a luz nem o som, é a própria pessoa amada mesma, o seu vero cabelo, e o vero pêlo, o osso de seu joelho, sua terna e úmida presença carnal, o imediato calor; é o de hoje, o agora, o aqui - e isso não há. Então a outra pessoa vira retratinho no bolso, borboleta perdida no ar, brisa que a testa recebe na esquina, tudo o que for eco, sombra, imagem, um pequeno fantasma, e nada mais. E a vida de todo dia vai gastando insensivelmente a outra pessoa, hoje lhe tira um modesto fio de cabelo, amanhã apenas passa a unha de leve fazendo um traço branco na sua coxa queimada pelo sol, de súbito a outra pessoa entra em fading um sábado inteiro, está-se gastando, perdendo seu poder emissor a distância. Cuidai amar uma pessoa, e ao fim vosso amor é um maço de cartas e fotografias no fundo de uma gaveta que se abre cada vez menos... Não ameis a distância, não ameis, não ameis! - Rubem Braga
+ Acordo cedo e vejo o mar se espreguiçando; o sol acabou de nascer. Vou para a praia; é bom chegar a esta hora em que a areia que o mar lavou ainda está limpinha, sem marca de nenhum pé. A manhã está nítida no ar leve; dou um mergulho e essa água salgada me faz bem, limpa de todas as coisas da noite. - Rubem Braga
+ Sou um homem quieto, o que eu gosto é ficar num banco sentado, entre moitas, calado, anoitecendo devagar, meio triste, lembrando umas coisas, umas coisas que nem valiam a pena lembrar. - Rubem Braga
+ A Outra Noite Outro dia fui a São Paulo e resolvi voltar à noite, uma noite de vento sul e chuva, tanto lá como aqui. Quando vinha para casa de táxi, encontrei um amigo e o trouxe até Copacabana; e contei a ele que lá em cima, além das nuvens, estava um luar lindo, de lua cheia; e que as nuvens feias que cobriam a cidade eram, vistas de cima, enluaradas, colchões de sonho, alvas, uma paisagem irreal. Depois que o meu amigo desceu do carro, o chofer aproveitou o sinal fechado para voltar-se para mim: -O senhor vai desculpar, eu estava aqui a ouvir sua conversa. Mas, tem mesmo luar lá em cima? Confirmei: sim, acima da nossa noite preta e enlamaçada e torpe havia uma outra - pura, perfeita e linda. -Mas, que coisa... Ele chegou a pôr a cabeça fora do carro para olhar o céu fechado de chuva. Depois continuou guiando mais lentamente. Não sei se sonhava em ser aviador ou pensava em outra coisa. -Ora, sim senhor... E, quando saltei e paguei a corrida, ele me disse um "boa noite" e um "muito obrigado ao senhor" tão sinceros, tão veementes, como se eu lhe tivesse feito um presente de rei. - Rubem Braga