Sim, sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo, Espécie de acessório ou sobresselente próprio, Arredores irregulares da minha emoção sincera, Sou eu aqui em mim, sou eu. Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou. Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma. Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim. E ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconsequente, Como de um sonho formado sobre realidades mistas, De me ter deixado, a mim, num banco de carro eléctrico, Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima. E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua, Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda, De haver melhor em mim do que eu. Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa, Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores, De haver falhado tudo como tropeçar no capacho, De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas, De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida. Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica, Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar, De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo — A impressão de pão com manteiga e brinquedos, De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina, De uma boa vontade para com a vida encostada de testa à janela, Num ver chover com som lá fora E não as lágrimas mortas de custar a engolir. Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado, O emissário sem carta nem credenciais, O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro, A quem tinem as campainhas da cabeça Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima. Sou eu mesmo, a charada sincopada Que ninguém da roda decifra nos serões de província. Sou eu mesmo, que remédio!…


Fernando Pessoa

Outras frases de Fernando Pessoa

+ vivo por que vivo, mas com a certeza que amanha sera um dia melhor - Fernando Pessoa

+ XXXIX - O MISTÉRIO DAS COUSAS O mistério das cousas, onde está ele? Onde está ele que não aparece Pelo menos a mostrar-nos que é mistério? Que sabe o rio disso e que sabe a árvore? E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso? Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas, Rio como um regato que soa fresco numa pedra. Porque o único sentido oculto das cousas É elas não terem sentido oculto nenhum, É mais estranho do que todas as estranhezas E do que os sonhos de todos os poetas E os pensamentos de todos os filósofos, Que as cousas sejam realmente o que parecem ser E não haja nada que compreender. Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: — As cousas não têm significação: têm existência. As cousas são o único sentido oculto das cousas. - Fernando Pessoa

+ Vive a tua vida. Não sejas vivido por ela. - Fernando Pessoa

+ We torture our brother men with hate, spite, evil, and then say “the world is bad”. Torturamos os nossos irmãos homens com o ódio, o rancor, a maldade e depois dizemos «o mundo é mau». (Aforismos e afins) - Fernando Pessoa

+ Vivo sempre no presente. O futuro, não o conheço. O passado, já o não tenho. Pesa-me um como a possibilidade de tudo, o outro como a realidade de nada. Não tenho esperanças nem saudades. Conhecendo o que tem sido a minha vida até hoje — tantas vezes e em tanto o contrário do que eu a desejara —, que posso presumir da minha vida de amanhã senão que será o que não presumo, o que não quero, o que me acontece de fora, até através da minha vontade? Nem tenho nada no meu passado que relembre com o desejo inútil de o repetir. Nunca fui senão um vestígio e um simulacro de mim. O meu passado é tudo quanto não consegui ser. Nem as sensações de momentos idos me são saudosas: o que se sente exige o momento; passado este, há um virar de página e a história continua, mas não o texto. Breve sombra escura de uma árvore citadina, leve som de água caindo no tanque triste, verde da relva regular — jardim público ao quase crepúsculo —, sois, neste momento, o universo inteiro para mim, porque sois o conteúdo pleno da minha sensação consciente. Não quero mais da vida do que senti-la a perder-se nestas tardes imprevistas, ao som de crianças alheias que brincam nestes jardins engradados pela melancolia das ruas que os cercam, e copados, para além dos ramos altos das árvores, pelo céu velho onde as estrelas recomeçam. - Fernando Pessoa

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