Frases de Carlos Drummond De Andrade

+ ACORDAR VIVER Como acordar sem sofrimento? Recomeçar sem horror? O sono transportou-me àquele reino onde não existe vida e eu quedo inerte sem paixão. Como repetir, dia seguinte após dia seguinte, a fábula inconclusa, suportar a semelhança das coisas ásperas de amanhã com as coisas ásperas de hoje? Como proteger-me das feridas que rasga em mim o acontecimento, qualquer acontecimento que lembra a Terra e sua púrpura demente? E mais aquela ferida que me inflijo a cada hora, algoz do inocente que não sou? Ninguém responde, a vida é pétrea. - Carlos Drummond De Andrade

+ Poema Canção Amiga Eu preparo uma canção em que minha mãe se reconheça, todas as mães se reconheçam, e que fale como dois olhos. Caminho por uma rua que passa em muitos países. Se não me vêem, eu vejo e saúdo velhos amigos. Eu distribuo um segredo como quem ama ou sorri. No jeito mais natural dois carinhos se procuram. Minha vida, nossas vidas formam um só diamante. Aprendi novas palavras e tornei outras mais belas. Eu preparo uma canção que faça acordar os homens e adormecer as crianças. - Carlos Drummond De Andrade

+ O pássaro é livre na prisão do ar. O espírito é livre na prisão do corpo. Mas livre, bem livre, é mesmo estar morto. - Carlos Drummond De Andrade

+ No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra ... - Carlos Drummond De Andrade

+ É fácil falar em nome do povo, ele não tem voz. - Carlos Drummond De Andrade

+ Caso do Vestido Nossa mãe, o que é aquele vestido, naquele prego? Minhas filhas, é o vestido de uma dona que passou. Passou quando, nossa mãe? Era nossa conhecida? Minhas filhas, boca presa. Vosso pai evém chegando. Nossa mãe, dizei depressa que vestido é esse vestido. Minhas filhas, mas o corpo ficou frio e não o veste. O vestido, nesse prego, está morto, sossegado. Nossa mãe, esse vestido tanta renda, esse segredo! Minhas filhas, escutai palavras de minha boca. Era uma dona de longe, vosso pai enamorou-se. E ficou tão transtornado, se perdeu tanto de nós, se afastou de toda vida, se fechou, se devorou, chorou no prato de carne, bebeu, brigou, me bateu, me deixou com vosso berço, foi para a dona de longe, mas a dona não ligou. Em vão o pai implorou. Dava apólice, fazenda, dava carro, dava ouro, beberia seu sobejo, lamberia seu sapato. Mas a dona nem ligou. Então vosso pai, irado, me pediu que lhe pedisse, a essa dona tão perversa, que tivesse paciência e fosse dormir com ele... Nossa mãe, por que chorais? Nosso lenço vos cedemos. Minhas filhas, vosso pai chega ao pátio. Disfarcemos. Nossa mãe, não escutamos pisar de pé no degrau. Minhas filhas, procurei aquela mulher do demo. E lhe roguei que aplacasse de meu marido a vontade. Eu não amo teu marido, me falou ela se rindo. Mas posso ficar com ele se a senhora fizer gosto, só pra lhe satisfazer, não por mim, não quero homem. Olhei para vosso pai, os olhos dele pediam. Olhei para a dona ruim, os olhos dela gozavam. O seu vestido de renda, de colo mui devassado, mais mostrava que escondia as partes da pecadora. Eu fiz meu pelo-sinal, me curvei... disse que sim. Sai pensando na morte, mas a morte não chegava. Andei pelas cinco ruas, passei ponte, passei rio, visitei vossos parentes, não comia, não falava, tive uma febre terçã, mas a morte não chegava. Fiquei fora de perigo, fiquei de cabeça branca, perdi meus dentes, meus olhos, costurei, lavei, fiz doce, minhas mãos se escalavraram, meus anéis se dispersaram, minha corrente de ouro pagou conta de farmácia. Vosso pais sumiu no mundo. O mundo é grande e pequeno. Um dia a dona soberba me aparece já sem nada, pobre, desfeita, mofina, com sua trouxa na mão. Dona, me disse baixinho, não te dou vosso marido, que não sei onde ele anda. Mas te dou este vestido, última peça de luxo que guardei como lembrança daquele dia de cobra, da maior humilhação. Eu não tinha amor por ele, ao depois amor pegou. Mas então ele enjoado confessou que só gostava de mim como eu era dantes. Me joguei a suas plantas, fiz toda sorte de dengo, no chão rocei minha cara, me puxei pelos cabelos, me lancei na correnteza, me cortei de canivete, me atirei no sumidouro, bebi fel e gasolina, rezei duzentas novenas, dona, de nada valeu: vosso marido sumiu. Aqui trago minha roupa que recorda meu malfeito de ofender dona casada pisando no seu orgulho. Recebei esse vestido e me dai vosso perdão. Olhei para a cara dela, quede os olhos cintilantes? quede graça de sorriso, quede colo de camélia? quede aquela cinturinha delgada como jeitosa? quede pezinhos calçados com sandálias de cetim? Olhei muito para ela, boca não disse palavra. Peguei o vestido, pus nesse prego da parede. Ela se foi de mansinho e já na ponta da estrada vosso pai aparecia. Olhou pra mim em silêncio, mal reparou no vestido e disse apenas: — Mulher, põe mais um prato na mesa. Eu fiz, ele se assentou, comeu, limpou o suor, era sempre o mesmo homem, comia meio de lado e nem estava mais velho. O barulho da comida na boca, me acalentava, me dava uma grande paz, um sentimento esquisito de que tudo foi um sonho, vestido não há... nem nada. Minhas filhas, eis que ouço vosso pai subindo a escada. - Carlos Drummond De Andrade

+ Eu tropeço no possível, e não desisto de fazer a descoberta do que tem dentro da casca do impossível. - Carlos Drummond De Andrade

+ As coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão Mas as coisas findas muito mais que lindas, essas ficarão. - Carlos Drummond De Andrade

+ Se por algum motivo você estiver triste, se a vida te deu uma rasteira e a outra pessoa sofrer o seu sofrimento, chorar as suas lágrimas e enxugá-las com ternura, que coisa maravilhosa: você poderá contar com ela em qualquer momento de sua vida. - Carlos Drummond De Andrade

+ Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. (...) Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: "Trouxeste a chave?" - Carlos Drummond De Andrade

+ Não há vivos, há os que morreram e os que esperam a vez. - Carlos Drummond De Andrade

+ Eu não devia te dizer , mas essa lua, mas esse conhaque, botam a gente comovido como o diabo. - Carlos Drummond De Andrade

+ Eterno é a flor que se fana se soube florir é o meninno recém-nascido antes que lhe deem nome e lhe comuniquem o sentimento do efêmero é o gesto de enlaçar e beijar na visita do amor às almas eterno é tudo aquilo que vive uma fração de segundo mas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma força [o resgata. - Carlos Drummond De Andrade

+ A flor e seu nome Mas o que impressiona mesmo no amor-perfeito é o nome. Que responsabilidade, meu filho! Há por aí uma planta chamada de amor-de-um-dia, que não carece muito esforço para ser e acontecer, como doidivanas. Outra atende por amor-das-onze-horas e presume-se como sua vida é folgada. Há também amor-de-vaqueiro, amor-de-hortelão, amor-de-moça, amor-de-negro... muitos amores vegetais que desempenham função limitada. Mas este aqui não tem área específica, não se dirige a grupo, ocasião, profissão. É absoluto, resume um ideal que vai além do poder das flores e dos seres humanos. Que sentirá o amor-perfeito, sabendo-se assim nomeado? Que tristeza lhe transfixará o veludo das pétalas , ao sentir que os homens que tal apelação lhe dera não são absolutamente perfeitos em seus amores? Que aquele substantivo, casado a este adjetivo, sugere mais aspiração infrutífera da alma do que modelo identificável no cotidiano? A tais perguntas o sóbrio amor-perfeito não responde. O outono tampouco. Talvez seja melhor não haver resposta. - Carlos Drummond De Andrade

+ Uma eleição é feita para corrigir o erro da eleição anterior, mesmo que o agrave. - Carlos Drummond De Andrade

+ Que século, meu Deus! - exclamaram os ratos e começaram a roer o edifício. - Carlos Drummond De Andrade

+ A tarde talvez fosse azul não houvesse tantos desejos. - Carlos Drummond De Andrade

+ O problema não é inventar. É ser inventado hora após hora E nunca ficar pronta Nossa edição convincente. - Carlos Drummond De Andrade

+ Também já fui brasileiro Eu também já fui brasileiro moreno como vocês. Ponteei viola, guiei forde e aprendi na mesa dos bares que o nacionalismo é uma virtude. Mas há uma hora em que os bares se fecham e todas as virtudes se negam. Eu também já fui poeta. Bastava olhar para mulher, pensava logo nas estrelas e outros substantivos celestes. Mas eram tantas, o céu tamanho, minha poesia perturbou-se. Eu também já tive meu ritmo. Fazia isso, dizia aquilo. E meus amigos me queriam, meus inimigos me odiavam. Eu irônico deslizava satisfeito de ter meu ritmo. Mas acabei confundindo tudo. Hoje não deslizo mais não, não sou irônico mais não, não tenho ritmo mais não. - Carlos Drummond De Andrade

+ Perdi o bonde e a esperança Volto pálido para casa - Carlos Drummond De Andrade

+ A felicidade é um estado de espírito transitório por natureza. Nós temos momentos de plenitude, divinos, celestiais, mas, ao lado disso, tem a rotina, a dor de barriga, a dor de dente, a conta por pagar. - Carlos Drummond De Andrade

+ Resíduo De tudo ficou um pouco Do meu medo. Do teu asco. Dos gritos gagos. Da rosa ficou um pouco Ficou um pouco de luz captada no chapéu. Nos olhos do rufião de ternura ficou um pouco (muito pouco). Pouco ficou deste pó de que teu branco sapato se cobriu. Ficaram poucas roupas, poucos véus rotos pouco, pouco, muito pouco. Mas de tudo fica um pouco. Da ponte bombardeada, de duas folhas de grama, do maço - vazio - de cigarros, ficou um pouco. Pois de tudo fica um pouco. Fica um pouco de teu queixo no queixo de tua filha. De teu áspero silêncio um pouco ficou, um pouco nos muros zangados, nas folhas, mudas, que sobem. Ficou um pouco de tudo no pires de porcelana, dragão partido, flor branca, ficou um pouco de ruga na vossa testa, retrato. Se de tudo fica um pouco, mas por que não ficaria um pouco de mim? no trem que leva ao norte, no barco, nos anúncios de jornal, um pouco de mim em Londres, um pouco de mim algures? na consoante? no poço? Um pouco fica oscilando na embocadura dos rios e os peixes não o evitam, um pouco: não está nos livros. De tudo fica um pouco. Não muito: de uma torneira pinga esta gota absurda, meio sal e meio álcool, salta esta perna de rã, este vidro de relógio partido em mil esperanças, este pescoço de cisne, este segredo infantil... De tudo ficou um pouco: de mim; de ti; de Abelardo. Cabelo na minha manga, de tudo ficou um pouco; vento nas orelhas minhas, simplório arroto, gemido de víscera inconformada, e minúsculos artefatos: campânula, alvéolo, cápsula de revólver... de aspirina. De tudo ficou um pouco. E de tudo fica um pouco. Oh abre os vidros de loção e abafa o insuportável mau cheiro da memória. Mas de tudo, terrível, fica um pouco, e sob as ondas ritmadas e sob as nuvens e os ventos e sob as pontes e sob os túneis e sob as labaredas e sob o sarcasmo e sob a gosma e sob o vômito e sob o soluço, o cárcere, o esquecido e sob os espetáculos e sob a morte escarlate e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes e sob tu mesmo e sob teus pés já duros e sob os gonzos da família e da classe, fica sempre um pouco de tudo. Às vezes um botão. Às vezes um rato. - Carlos Drummond De Andrade

+ Não importa a distância que nos separa, se há um céu que nos une. - Carlos Drummond De Andrade

+ Lutar com palavras é a tuta mais vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã. [...] Palavra,palavra (digo exasperado), se me desafias, aceito o combate. - Carlos Drummond De Andrade

+ O homem, bicho da Terra tão pequeno chateia-se na Terra lugar de muita miséria e pouca diversão, faz um foguete, uma cápsula, um módulo toca para a Lua desce cauteloso na Lua pisa na Lua planta bandeirola na Lua experimenta a Lua coloniza a Lua civiliza a Lua humaniza a Lua. Lua humanizada: tão igual à Terra. O homem chateia-se na Lua. Vamos para Marte — ordena a suas máquinas. Elas obedecem, o homem desce em Marte pisa em Marte experimenta coloniza civiliza humaniza Marte com engenho e arte. Marte humanizado, que lugar quadrado. Vamos a outra parte? Claro — diz o engenho sofisticado e dócil. Vamos a Vênus. O homem põe o pé em Vênus, vê o visto — é isto? idem idem idem. O homem funde a cuca se não for a Júpiter proclamar justiça junto com injustiça repetir a fossa repetir o inquieto repetitório. Outros planetas restam para outras colônias. O espaço todo vira Terra-a-terra. O homem chega ao Sol ou dá uma volta só para tever? Não-vê que ele inventa roupa insiderável de viver no Sol. Põe o pé e: mas que chato é o Sol, falso touro espanhol domado. Restam outros sistemas fora do solar a col- onizar. Ao acabarem todos só resta ao homem (estará equipado?) a dificílima dangerosíssima viagem de si a si mesmo: pôr o pé no chão do seu coração experimentar colonizar civilizar humanizar o homem descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas a perene, insuspeitada alegria de con-viver. - Carlos Drummond De Andrade