Nunca supus que isto que chamam morte Tivesse qualquer espécie de sentido… Cada um de nós, aqui aparecido, Onde manda a lei e a falsa sorte,

Tem só uma demora de passagem Entre um comboio e outro, entroncamento Chamado o mundo, ou a vida, ou o momento; Mas, seja como for, segue a viagem.

Passei, embora num comboio expresso Seguisses, e adiante do em que vou; No términus de tudo, ao fim lá estou Nessa ida que afinal é um regresso.

Porque na enorme gare onde Deus manda Grandes acolhimentos se darão Para cada prolixo coração Que com seu próprio ser vive em demanda.

Hoje, falho de ti, sou dois a sós. Há almas pares, as que conheceram Onde os seres são almas.

Como éramos só um, falando! Nós Éramos como um diálogo numa alma. Não sei se dormes […] calma, Sei que, falho de ti, estou um a sós.

É como se esperasse eternamente A tua vida certa e conhecida Aí em baixo, no café Arcada — Quase no extremo deste […]

Aí onde escreveste aqueles versos Do trapézio, doriu-nos […] Aquilo tudo que dizes no «Orpheu».

Ah, meu maior amigo, nunca mais Na paisagem sepulta desta vida Encontrarei uma alma tão querida Às coisas que em meu ser são as reais.

[…]

Não mais, não mais, e desde que saíste Desta prisão fechada que é o mundo, Meu coração é inerte e infecundo E o que sou é um sonho que está triste.

Porque há em nós, por mais que consigamos Ser nós mesmos a sós sem nostalgia, Um desejo de termos companhia — O amigo como esse que a falar amamos.


Fernando Pessoa

Outras frases de Fernando Pessoa

+ XXXIX - O MISTÉRIO DAS COUSAS O mistério das cousas, onde está ele? Onde está ele que não aparece Pelo menos a mostrar-nos que é mistério? Que sabe o rio disso e que sabe a árvore? E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso? Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas, Rio como um regato que soa fresco numa pedra. Porque o único sentido oculto das cousas É elas não terem sentido oculto nenhum, É mais estranho do que todas as estranhezas E do que os sonhos de todos os poetas E os pensamentos de todos os filósofos, Que as cousas sejam realmente o que parecem ser E não haja nada que compreender. Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: — As cousas não têm significação: têm existência. As cousas são o único sentido oculto das cousas. - Fernando Pessoa

+ Viver não é necessário. Necessário é criar. - Fernando Pessoa

+ Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir — é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida. Apagar tudo do quadro de um dia para o outro, ser novo com cada nova madrugada, numa revirgindade perpétua da emoção — isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente somos. - Fernando Pessoa

+ ⁠Vivem em nós inúmeros - Fernando Pessoa

+ Vivo sempre no presente. O futuro, não o conheço. O passado, já o não tenho. Pesa-me um como a possibilidade de tudo, o outro como a realidade de nada. Não tenho esperanças nem saudades. Conhecendo o que tem sido a minha vida até hoje — tantas vezes e em tanto o contrário do que eu a desejara —, que posso presumir da minha vida de amanhã senão que será o que não presumo, o que não quero, o que me acontece de fora, até através da minha vontade? Nem tenho nada no meu passado que relembre com o desejo inútil de o repetir. Nunca fui senão um vestígio e um simulacro de mim. O meu passado é tudo quanto não consegui ser. Nem as sensações de momentos idos me são saudosas: o que se sente exige o momento; passado este, há um virar de página e a história continua, mas não o texto. Breve sombra escura de uma árvore citadina, leve som de água caindo no tanque triste, verde da relva regular — jardim público ao quase crepúsculo —, sois, neste momento, o universo inteiro para mim, porque sois o conteúdo pleno da minha sensação consciente. Não quero mais da vida do que senti-la a perder-se nestas tardes imprevistas, ao som de crianças alheias que brincam nestes jardins engradados pela melancolia das ruas que os cercam, e copados, para além dos ramos altos das árvores, pelo céu velho onde as estrelas recomeçam. - Fernando Pessoa

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