Saudade nenhuma de mim

Volta e meia, crônicas, romances e poemas terminam com a indefectível frase: “Saudades de mim”. Será que eu já escrevi isso alguma vez, que sinto saudades de mim? Devo ter cometido, eu também, esta dramatização barata, somos todos reincidentes nos clichês. Mas, olha, sinceramente, não sinto, não.

Lembro de uma menina que se sentia uma estranha na sala de aula. Que adorava tomar lanche nas Lojas Americanas do centro da cidade. Que ficava esperando ser tirada pra dançar nas reuniões dançantes, e quando acontecia, que êxtase! Na vez em que foi tirada pelo garoto de quem ela era a fim (e ele a apertou mais do que os bons modos permitiam), os pais da menina chegaram justo naquela hora para buscá-la, sua primeira grande frustração. Lembro do primeiro beijo da menina, ela completamente nervosa. Lembro da menina já grande, em seu primeiro estágio, iniciando vida profissional. Lembro da menina agindo como adulta, indo morar fora do país. Lembro da menina voltando, sem resquícios da menina que havia sido. Saudades dela? Afeto por ela. Saudades eu tenho de nada.

Não voltaria um único dia na minha vida, e lembranças boas é o que não me faltam. Não voltaria à infância - mesmo nunca mais tendo sentido tanto orgulho de mim quanto senti no dia em que ganhei minha primeira bicicleta sem rodinhas auxiliares, aos 6 anos, e saí pedalando sem ajuda, já no primeiro minuto, sem quedas no currículo. Não voltaria à adolescência, quando fiz minhas primeiras viagens sozinha com as amigas e aprendi um pouquinho mais sobre quem eu era - e sobre quem eu não era. Não voltaria ao dia em que minhas filhas nasceram, que foram os dias mais felizes da minha vida, de uma felicidade inédita porque dali por diante haveria alguma mutilação na liberdade que eu tanto prezava - mas, por outro lado, experimentaria um amor que eu nem sonhava que podia ser tão intenso. Não voltaria ao dia de ontem - e ontem eu era mais jovem do que hoje, ontem eu era mais romântica do que hoje, ontem eu nem tinha pensado em escrever esta crônica, ontem faz mil anos. Não tenho saudades de mim com menos celulite, não tenho saudades de mim mais sonhadora. Não voltaria no tempo para consertar meus erros, não voltaria para a inocência que eu tinha - e tenho ainda. Terei saudades da ingenuidade que nunca perdi? Não tenho saudades nem de um minuto atrás. Tudo o que eu fui prossegue em mim.


Martha Medeiros

Outras frases de Martha Medeiros

+ Definitivo Definitivo, como tudo o que é simples. Nossa dor não advém das coisas vividas, mas das coisas que foram sonhadas e não se cumpriram. Sofremos por quê? Porque automaticamente esquecemos o que foi desfrutado e passamos a sofrer pelas nossas projeções irrealizadas, por todas as cidades que gostaríamos de ter conhecido ao lado do nosso amor e não conhecemos, por todos os filhos que gostaríamos de ter tido junto e não tivemos, por todos os shows e livros e silêncios que gostaríamos de ter compartilhado, e não compartilhamos. Por todos os beijos cancelados, pela eternidade. Sofremos não porque nosso trabalho é desgastante e paga pouco, mas por todas as horas livres que deixamos de ter para ir ao cinema, para conversar com um amigo, para nadar, para namorar. Sofremos não porque nossa mãe é impaciente conosco, mas por todos os momentos em que poderíamos estar confidenciando a ela nossas mais profundas angústias se ela estivesse interessada em nos compreender. Sofremos não porque nosso time perdeu, mas pela euforia sufocada. Sofremos não porque envelhecemos, mas porque o futuro está sendo confiscado de nós, impedindo assim que mil aventuras nos aconteçam, todas aquelas com as quais sonhamos e nunca chegamos a experimentar. Por que sofremos tanto por amor? O certo seria a gente não sofrer, apenas agradecer por termos conhecido uma pessoa tão bacana, que gerou em nós um sentimento intenso e que nos fez companhia por um tempo razoável, um tempo feliz. Como aliviar a dor do que não foi vivido? A resposta é simples como um verso: Se iludindo menos e vivendo mais! A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-se do sofrimento, perdemos também a felicidade. A dor é inevitável. O sofrimento é opcional... - Martha Medeiros

+ A DOR QUE DÓI MAIS Trancar o dedo numa porta dói. Bater com o queixo no chão dói. Torcer o tornozelo dói. Um tapa, um soco, um pontapé, doem. Dói bater a cabeça na quina da mesa, dói morder a língua, dói cólica, cárie e pedra no rim. Mas o que mais dói é saudade. Saudade de um irmão que mora longe. Saudade de uma cachoeira da infância. Saudade do gosto de uma fruta que não se encontra mais. Saudade do pai que já morreu. Saudade de um amigo imaginário que nunca existiu. Saudade de uma cidade. Saudade da gente mesmo, quando se tinha mais audácia e menos cabelos brancos. Doem essas saudades todas. Mas a saudade mais dolorida é a saudade de quem se ama. Saudade da pele, do cheiro, dos beijos. Saudade da presença, e até da ausência consentida. Você podia ficar na sala e ele no quarto, sem se verem, mas sabiam-se lá. Você podia ir para o aeroporto e ele para o dentista, mas sabiam-se onde. Você podia ficar o dia sem vê-lo, ele o dia sem vê-la, mas sabiam-se amanhã. Mas quando o amor de um acaba, ao outro sobra uma saudade que ninguém sabe como deter. Saudade é não saber. Não saber mais se ele continua se gripando no inverno. Não saber mais se ela continua clareando o cabelo. Não saber se ele ainda usa a camisa que você deu. Não saber se ela foi na consulta com o dermatologista como prometeu. Não saber se ele tem comido frango de padaria, se ela tem assistido as aulas de inglês, se ele aprendeu a entrar na Internet, se ela aprendeu a estacionar entre dois carros, se ele continua fumando Carlton, se ela continua preferindo Pepsi, se ele continua sorrindo, se ela continua dançando, se ele continua pescando, se ela continua lhe amando. Saudade é não saber. Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais compridos, não saber como encontrar tarefas que lhe cessem o pensamento, não saber como frear as lágrimas diante de uma música, não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche. Saudade é não querer saber. Não querer saber se ele está com outra, se ela está feliz, se ele está mais magro, se ela está mais bela. Saudade é nunca mais querer saber de quem se ama, e ainda assim, doer. - Martha Medeiros

+ Crônica do Amor Ninguém ama outra pessoa pelas qualidades que ela tem, caso contrário, os honestos, simpáticos e não fumantes teriam uma fila de pretendentes batendo a porta. O amor não é chegado a fazer contas, não obedece à razão. O verdadeiro amor acontece por empatia, por magnetismo, por conjunção estelar. Ninguém ama outra pessoa porque ela é educada, veste-se bem e é fã do Caetano. Isso são só referenciais. Ama-se pelo cheiro, pelo mistério, pela paz que o outro lhe dá, ou pelo tormento que provoca. Ama-se pelo tom de voz, pela maneira que os olhos piscam, pela fragilidade que se revela quando menos se espera. Você ama aquela petulante. Você escreveu dúzias de cartas que ela não respondeu, você deu flores que ela deixou a seco. Você gosta de rock e ela de chorinho, você gosta de praia e ela tem alergia a sol, você abomina Natal e ela detesta o Ano Novo, nem no ódio vocês combinam. Então? Então, que ela tem um jeito de sorrir que o deixa imobilizado, o beijo dela é mais viciante do que LSD, você adora brigar com ela e ela adora implicar com você. Isso tem nome. Você ama aquele cafajeste. Ele diz que vai e não liga, ele veste o primeiro trapo que encontra no armário. Ele não emplaca uma semana nos empregos, está sempre duro, e é meio galinha. Ele não tem a menor vocação para príncipe encantado e ainda assim você não consegue despachá-lo. Quando a mão dele toca na sua nuca, você derrete feito manteiga. Ele toca gaita na boca, adora animais e escreve poemas. Por que você ama este cara? Não pergunte para mim; você é inteligente. Lê livros, revistas, jornais. Gosta dos filmes dos irmãos Coen e do Robert Altman, mas sabe que uma boa comédia romântica também tem seu valor. É bonita. Seu cabelo nasceu para ser sacudido num comercial de xampu e seu corpo tem todas as curvas no lugar. Independente, emprego fixo, bom saldo no banco. Gosta de viajar, de música, tem loucura por computador e seu fettucine ao pesto é imbatível. Você tem bom humor, não pega no pé de ninguém e adora sexo. Com um currículo desse, criatura, por que está sem um amor? Ah, o amor, essa raposa. Quem dera o amor não fosse um sentimento, mas uma equação matemática: eu linda + você inteligente = dois apaixonados. Não funciona assim. Amar não requer conhecimento prévio nem consulta ao SPC. Ama-se justamente pelo que o amor tem de indefinível. Honestos existem aos milhares, generosos têm às pencas, bons motoristas e bons pais de família, tá assim, ó! Mas ninguém consegue ser do jeito que o amor da sua vida é! Pense nisso. Pedir é a maneira mais eficaz de merecer. É a contingência maior de quem precisa. - Martha Medeiros

+ Eu, modo de usar: Pode invadir ou chegar com delicadeza, mas não tão devagar que me faça dormir. Não grite comigo, tenho o péssimo hábito de revidar. Acordo pela manhã com ótimo humor mas… permita que eu escove os dentes primeiro. Toque muito em mim, principalmente nos cabelos e minta sobre minha nocauteante beleza. Tenho vida própria, me faça sentir saudades, conte algumas coisas que me façam rir, mas não conte piadas e nem seja preconceituoso, não perca tempo, cultivando este tipo de herança de seus pais. Viaje antes de me conhecer, sofra antes de mim para reconhecer-me um porto, um albergue da juventude. Eu saio em conta, você não gastará muito comigo. Acredite nas verdades que digo e também nas mentiras, elas serão raras e sempre por uma boa causa. Respeite meu choro, me deixe sozinha, só volte quando eu chamar e, não me obedeça sempre que eu também gosto de ser contrariada. (Então fique comigo quando eu chorar, combinado?). Seja mais forte que eu e menos altruísta! Não se vista tão bem… gosto de camisa para fora da calça, gosto de braços, gosto de pernas e muito de pescoço. Reverenciarei tudo em você que estiver a meu gosto: boca, cabelos, os pelos do peito e um joelho esfolado, você tem que se esfolar às vezes, mesmo na sua idade. Leia, escolha seus próprios livros, releia-os. Odeie a vida doméstica e os agitos noturnos. Seja um pouco caseiro e um pouco da vida, não de boate que isto é coisa de gente triste. Não seja escravo da televisão, nem xiita contra. Nem escravo meu, nem filho meu, nem meu pai. Escolha um papel para você que ainda não tenha sido preenchido e o invente muitas vezes. Me enlouqueça uma vez por mês mas, me faça uma louca boa, uma louca que ache graça em tudo que rime com louca: loba, boba, rouca, boca… Goste de música e de sexo. Goste de um esporte não muito banal. Não invente de querer muitos filhos, me carregar pra a missa, apresentar sua família… isso a gente vê depois… se calhar… deixa eu dirigir o seu carro, que você adora. Quero ver você nervoso, inquieto, olhe para outras mulheres, tenha amigos e digam muitas bobagens juntos. Não me conte seus segredos… me faça massagem nas costas. Não fume, beba, chore, eleja algumas contravenções. Me rapte! Se nada disso funcionar… experimente me amar! - Martha Medeiros

+ EU TE AMO… NÃO DIZ TUDO! Você sabe que é amado(a) porque lhe disseram isso? A demonstração de amor requer mais do que beijos, sexo e palavras. Sentir-se amado é sentir que a pessoa tem interesse real na sua vida. Que zela pela sua felicidade, Que se preocupa quando as coisas não estão dando certo. Que se coloca a postos para ouvir suas dúvidas, E que dá uma sacudida em você quando for preciso. Ser amado é ver que ele(a) lembra de coisas que você contou dois anos atrás. É ver como ele(a) fica triste quando você está triste, E como sorri com delicadeza quando diz que você está fazendo uma tempestade em copo d'água. Sente-se amado aquele que não vê transformada a mágoa em munição na hora da discussão. Sente-se amado aquele que se sente aceito, que se sente inteiro. Aquele que sabe que tudo pode ser dito e compreendido. Sente-se amado quem se sente seguro para ser exatamente como é, Sem inventar um personagem para a relação, Pois, personagem nenhum se sustenta muito tempo. Sente-se amado quem não ofega, mas suspira; Quem não levanta a voz, mas fala; Quem não concorda, mas escuta. Agora, sente-se e escute: eu te amo não diz tudo! - Martha Medeiros

+ Mais frases