Livro de Horas

Aqui, diante de mim, Eu, pecador, me confesso De ser assim como sou. Me confesso o bom e o mau Que vão ao leme da nau Nesta deriva em que vou.

Me confesso Possesso De virtudes teologais, Que são três, E dos pecados mortais, Que são sete, Quando a terra não repete Que são mais.

Me confesso O dono das minhas horas. O das facadas cegas e raivosas, E o das ternuras lúcidas e mansas. E de ser de qualquer modo Andanças Do mesmo todo.

Me confesso de ser charco E luar de charco, à mistura. De ser a corda do arco Que atira setas acima E abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo Que possa nascer em mim. De ter raízes no chão Desta minha condição. Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem. De ser um anjo caído Do tal Céu que Deus governa; De ser um monstro saído Do buraco mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu. Eu, tal e qual como vim Para dizer que sou eu Aqui, diante de mim!


Miguel Torga

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+ A maior desgraça que pode acontecer a um artista é começar pela literatura, em vez de começar pela vida. - Miguel Torga

+ Mas, francamente: fé em quê? Num mundo que almoça valores, janta valores, ceia valores, e os degrada cinicamente, sem qualquer estremecimento da consciência? Peçam-me tudo, menos que tape os olhos. Bem basta quando a terra nos cobrir! - Miguel Torga

+ Recomeça... se puderes, sem angústia e sem pressa e os passos que deres, nesse caminho duro do futuro, dá-os em liberdade, enquanto não alcances não descanses, de nenhum fruto queiras só metade. - Miguel Torga

+ A vida afectiva é a única que vale a pena. A outra apenas serve para organizar na consciência o processo da inutilidade de tudo. - Miguel Torga

+ O que é bonito neste mundo, e anima, é ver que na vindima de cada sonho fica a cepa a sonhar outra aventura. E que a doçura que não se prova se transfigura noutra doçura muito mais pura e muito mais nova. - Miguel Torga

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