Frases de Ferreira Gullar

+ Uma parte de mim é permanente: outra parte se sabe de repente - Ferreira Gullar

+ Falar A poesia é, de fato, o fruto de um silêncio que sou eu, sois vós, por isso tenho que baixar a voz porque, se falo alto, não me escuto. A poesia é, na verdade, uma fala ao revés da fala, como um silêncio que o poeta exuma do pó, a voz que jaz embaixo do falar e no falar se cala. Por isso o poeta tem que falar baixo baixo quase sem fala em suma mesmo que não se ouça coisa alguma. - Ferreira Gullar

+ Só mesmo um personagem como este [Dom Quixote] e uma história como esta, para nos exporem à nossa própria e invencível contradição: queremos a sensatez que nos protege, mas não resistimos à loucura que arrebata. E, por isso, inventamos a arte, que nos permite experimentar a loucura sem correr o risco de irmos parar num hospício. - Ferreira Gullar

+ Não posso defender um regime [o cubano] sob o qual eu não gostaria de viver. Não posso admirar um país do qual eu não possa sair na hora que quiser. Não dá para defender um regime em que não se possa publicar um livro sem pedir permissão ao governo. Apesar disso, há uma porção de intelectuais brasileiros que defendem Cuba, mas, obviamente, não querem viver lá de jeito nenhum. É difícil para as pessoas reconhecer que estavam erradas, que passaram a vida toda pregando uma coisa que nunca deu certo. - Ferreira Gullar

+ Um instante Aqui me tenho Como não me conheço nem me quis sem começo nem fim aqui me tenho sem mim nada lembro nem sei à luz presente sou apenas um bicho transparente. - Ferreira Gullar

+ É melhor ser feliz do que ter razão. - Ferreira Gullar

+ Uma parte de mim pesa, pondera: outra parte delira... - Ferreira Gullar

+ mar azul mar azul marco azul mar azul marco azul barco azul mar azul marco azul barco azul arco azul mar azul marco azul barco azul arco azul ar azul - Ferreira Gullar

+ Uma parte de mim é multidão, outra parte estranheza e solidão - Ferreira Gullar

+ TEU CORPO O teu corpo muda Independente de ti não te pergunta se deve engordar. É um ser estranho que tem o teu rosto ri em teu riso e goza com teu sexo. Lhe dás de comer e ele fica quieto. Penteias-lhe os cabelos como se fossem teus. Num relance, achas que apenas estás nesse corpo. Mas como, se nele nasceste e sem ele não és? Ao que tudo indica tu és esse corpo -que a cada dia mais difere de ti. E até já tens medo De olhar no espelho: Lento como nuvem o rosto que eras vai virando outro. E a erupção no queixo? Vai sumir? Alastrar-se feito impingem, câncer? Poderás detê-la com Dermobenzol? Ou terás que chamar o corpo de bombeiros? Tocas o joelho: Tu és esse osso. Olhas a mão. A forma sentada de bruços na mesa és tu. Mas quem morre? Quem diz ao teu corpo – morre – quem diz a ele – envelhece – se não o desejas, se queres continuar vivo e jovem por infinitas manhãs? - Ferreira Gullar

+ OFF PRICE Que a sorte me livre do mercado e que me deixe continuar fazendo (sem o saber) fora de esquema meu poema inesperado e que eu possa cada vez mais desaprender de pensar o pensado e assim poder reinventar o certo pelo errado - Ferreira Gullar

+ Nós, latino-americanos Somos todos irmãos mas não porque tenhamos a mesma mãe e o mesmo pai: temos é o mesmo parceiro que nos trai. Somos todos irmãos não porque dividamos o mesmo teto e a mesma mesa: divisamos a mesma espada sobre nossa cabeça. Somos todos irmãos não porque tenhamos o mesmo braço, o mesmo sobrenome: temos um mesmo trajeto de sanha e fome. Somos todos irmãos não porque seja o mesmo sangue que no corpo levamos: o que é o mesmo é o modo como o derramamos. - Ferreira Gullar

+ Universo O que vi do universo até hoje foi pouco mas, se penso em quanto meço, posso dizer que foi muito. Sei, de ler, que o universo é de tais dimensões que a própria luz só o atravessa depois e bilhões e bilhões de anos, e que nele há multidões de galáxias e sóis que talvez já morreram, antes de chegar a sua luz até nós. Deste modo, é correto dizer que o céu que ora espio é passado e que até pode ser que o universo que veja já tenha se acabado. Mas, de fato, não vejo a não ser nas revistas de astronomia: o lampejo espantoso de infinitas constelações a brilhar num abismo espectral e difuso de gases e poeira estelar que me deixa confuso. E assim, assustado e mudo, bem menor que um ínfimo grão de poeira, contudo, sou capaz de apreender, no meu íntimo, essas incontáveis galáxias, esses espaços sem fim, essa treva e explosões de lava. Como tudo isso cabe em mim? O fato é que qualquer vasta nuvem prenhe de sóis já mortos ou futuros não possui consciência, esse obscuro fenômeno surgido aqui na Via Láctea, ou melhor, na Terra, e talvez somente nela, não se sabe por quê, mas que permite ao cosmos perceber-se a si mesmo, e ter olhos pra se ver. Olhos que são nossos, lentes minúsculas mas sensíveis que captam a luz das nebulosas vinda de espaço e tempo inconcebíveis. É o que dizem, pois tudo o que vejo é, à noite, apenas o brilhar de distantes luzes no escuro. São estrelas? planetas no sistema solar? Somos algo recente e raro no universo, como rara é também a própria luz dos sóis deste sol que nos aclara. Todo universo é treva. Inalcançável vastidão escura dentro da qual os sóis, as explosões de gás e luz são exceções. O universo em sua vastidão vazia é espaço e treva, é matéria fria em que não há o mínimo sinal de vida ou consciência; o que é mental nele, ao que se sabe, está em nós, no mínimo do mínimo do existente e o que também ma treva luze é nossa VOZ inaudível no espantoso vão silente, Vi pouco do universo: afora a asa de luz e pó da Via Láctea, o que conheço são as manhãs que invadem minha casa. - Ferreira Gullar

+ [O sentido da minha vida] é inventado a cada momento, mas é claro que eu necessito da poesia, eu necessito da arte, eu necessito de estar discutindo essas coisas, de estar pensando nessas coisas que dão transcendência à vida. Eu não tenho dúvida alguma de que a arte é necessária porque a vida não é suficiente, porque senão qual era a necessidade de inventar a arte? A necessidade é essa: as pessoas necessitam dela, por mais que aconteça coisa no mundo, a arte sobrevive, como uma forma de acordo com o momento, com a época, ela é uma coisa necessária, como a ciência é necessária, como a filosofia é necessária, como a religião é necessária, como a política é necessária. - Ferreira Gullar

+ Não-coisa O que o poeta quer dizer no discurso não cabe e se o diz é pra saber o que ainda não sabe. Uma fruta uma flor um odor que relume... Como dizer o sabor, seu clarão seu perfume? Como enfim traduzir na lógica do ouvido o que na coisa é coisa e que não tem sentido? A linguagem dispõe de conceitos, de nomes mas o gosto da fruta só o sabes se a comes só o sabes no corpo o sabor que assimilas e que na boca é festa de saliva e papilas invadindo-te inteiro tal do mar o marulho e que a fala submerge e reduz a um barulho, um tumulto de vozes de gozos, de espasmos, vertiginoso e pleno como são os orgasmos No entanto, o poeta desafia o impossível e tenta no poema dizer o indizível: subverte a sintaxe implode a fala, ousa incutir na linguagem densidade de coisa sem permitir, porém, que perca a transparência já que a coisa é fechada à humana consciência. O que o poeta faz mais do que mencioná-la é torná-la aparência pura — e iluminá-la. Toda coisa tem peso: uma noite em seu centro. O poema é uma coisa que não tem nada dentro, a não ser o ressoar de uma imprecisa voz que não quer se apagar — essa voz somos nós. - Ferreira Gullar

+ Como dois e dois são quatro Sei que a vida vale a pena Embora o pão seja caro E a liberdade pequena - Ferreira Gullar

+ O QUE SE FOI O que se foi se foi. Se algo ainda perdura é só a amarga marca na paisagem escura. Se o que foi regressa, traz um erro fatal: falta-lhe simplesmente ser real. Portanto, o que se foi, se volta, é feito morte. Então por que me faz o coração bater tão forte? - Ferreira Gullar

+ bela bela mais que bela mas como era o nome dela? Não era Helena nem Vera nem Nara nem Gabriela nem Tereza nem Maria Seu nome seu nome era... Perdeu-se na carne fria perdeu na confusão de tanta noite e tanto dia perdeu-se na profusão das coisas acontecidas mudou de cara e cabelos mudou de olhos e risos mudou de casa e de tempo mas está comigo está perdido comigo teu nome - Ferreira Gullar

+ Houve uma época em que eu pensava que as pessoas deviam ter um gatilho na garganta: quando pronunciasse — eu te amo —, mentindo, o gatilho disparava e elas explodiam. Era uma defesa intolerante contra os levianos e que refletia sem dúvida uma enorme insegurança de seu inventor. Insegurança e inexperiência. Com o passar dos anos a idéia foi abandonada, a vida revelou-me sua complexidade, suas nuanças. Aprendi que não é tão fácil dizer eu te amo sem pelo menos achar que ama e, quando a pessoa mente, a outra percebe, e se não percebe é porque não quer perceber, isto é: quer acreditar na mentira. Claro, tem gente que quer ouvir essa expressão mesmo sabendo que é mentira. O mentiroso, nesses casos, não merece punição alguma. Por aí já se vê como esse negócio de amor é complicado e de contornos imprecisos. Pode-se dizer, no entanto, que o amor é um sentimento radical — falo do amor-paixão — e é isso que aumenta a complicação. Como pode uma coisa ambígua e duvidosa ganhar a fúria das tempestades? Mas essa é a natureza do amor, comparável à do vento: fluido e arrasador. É como o vento, também às vezes doce, brando, claro, bailando alegre em torno de seu oculto núcleo de fogo. O amor é, portanto, na sua origem, liberação e aventura. Por definição, anti-burguês. O próprio da vida burguesa não é o amor, é o casamento, que é o amor institucionalizado, disciplinado, integrado na sociedade. O casamento é um contrato: duas pessoas se conhecem, se gostam, se sentem a traídas uma pela outra e decidem viver juntas. Isso poderia ser uma coisa simples, mas não é, pois há que se inserir na ordem social, definir direitos e deveres perante os homens e até perante Deus. Carimbado e abençoado, o novo casal inicia sua vida entre beijos e sorrisos. E risos e risinhos dos maledicentes. Por maior que tenha sido a paixão inicial, o impulso que os levou à pretoria ou ao altar (ou a ambos), a simples assinatura do contrato já muda tudo. Com o casamento o amor sai do marginalismo, da atmosfera romântica que o envolvia, para entrar nos trilhos da institucionalidade. Torna-se grave. Agora é construir um lar, gerar filhos, criá-los, educá-los até que, adultos, abandonem a casa para fazer sua própria vida. Ou seja: se corre tudo bem, corre tudo mal. Mas, não radicalizemos: há exceções — e dessas exceções vive a nossa irrenunciável esperança. Conheci uma mulher que costumava dizer: não há amor que resista ao tanque de lavar (ou à máquina, mesmo), ao espanador e ao bife com fritas. Ela possivelmente exagerava, mas com razão, porque tinha uns olhos ávidos e brilhantes e um coração ansioso. Ouvia o vento rumorejar nas árvores do parque, à tarde incendiando as nuvens e imaginava quanta vida, quanta aventura estaria se desenrolando naquele momento nos bares, nos cafés, nos bairros distantes. À sua volta certamente não acontecia nada: as pessoas em suas respectivas casas estavam apenas morando, sofrendo uma vida igual à sua. Essa inquietação bovariana prepara o caminho da aventura, que nem sempre acontece. Mas dificilmente deixa de acontecer. Pode não acontecer a aventura sonhada, o amor louco, o sonho que arrebata e funda o paraíso na terra. Acontece o vulgar adultério - o assim chamado -, que é quase sempre decepcionante, condenado, amargo e que se transforma numa espécie de vingança contra a mediocridade da vida. É como uma droga que se toma para curar a ansiedade e reajustar-se ao status quo. Estou curada, ela então se diz — e volta ao bife com fritas. Mas às vezes não é assim. Às vezes o sonho vem, baixa das nuvens em fogo e pousa aos teus pés um candelabro cintilante. Dura uma tarde? Uma semana? Um mês? Pode durar um ano, dois até, desde que as dificuldades sejam de proporção suficiente para manter vivo o desafio e não tão duras que acovardem os amantes. Para isso, o fundamental é saber que tudo vai acabar. O verdadeiro amor é suicida. O amor, para atingir a ignição máxima, a entrega total, deve estar condenado: a consciência da precariedade da relação possibilita mergulhar nela de corpo e alma, vivê-la enquanto morre e morrê-la enquanto vive, como numa desvairada montanha-russa, até que, de repente, acaba. E é necessário que acabe como começou, de golpe, cortado rente na carne, entre soluços, querendo e não querendo que acabe, pois o espírito humano não comporta tanta realidade, como falou um poeta maior. E enxugados os olhos, aberta a janela, lá estão as mesmas nuvens rolando lentas e sem barulho pelo céu deserto de anjos. O alívio se confunde com o vazio, e você agora prefere morrer. A barra é pesada. Quem conheceu o delírio dificilmente se habitua à antiga banalidade. Foi Gogol, no Inspetor Geral quem captou a decepção desse despertar. O falso inspetor mergulhara na fascinante impostura que lhe possibilitou uma vida de sonho: homenagens, bajulações, dinheiro e até o amor da mulher e da filha do prefeito. Eis senão quando chega o criado, trazendo-lhe o chapéu e o capote ordinário, signos da sua vida real, e lhe diz que está na hora de ir-se pois o verdadeiro inspetor está para chegar. Ele se assusta: mas então está tudo acabado? Não era verdade o sonho? E assim é: a mais delirante paixão, terminada, deixa esse sabor de impostura na boca, como se a felicidade não pudesse ser verdade. E no entanto o foi, e tanto que é impossível continuar vivendo agora, sem ela, normalmente. Ou, como diz Chico Buarque: sofrendo normalmente. Evaporado o fantasma, reaparece em sua banal realidade o guarda-roupa, a cômoda, a camisa usada na cadeira, os chinelos. E tudo impregnado da ausência do sonho, que é agora uma agulha escondida em cada objeto, e te fere, inesperadamente, quando abres a gaveta, o livro. E te fere não porque ali esteja o sonho ainda, mas exatamente porque já não está: esteve. Sais para o trabalho, que é preciso esquecer, afundar no dia-a-dia, na rotina do dia, tolerar o passar das horas, a conversa burra, o cafezinho, as notícias do jornal. Edifícios, ruas, avenidas, lojas, cinema, aeroportos, ônibus, carrocinhas de sorvete: o mundo é um incomensurável amontoado de inutilidades. E de repente o táxi que te leva por uma rua onde a memória do sonho paira como um perfume. Que fazer? Desviar-se dessas ruas, ocultar os objetos ou, pelo contrário, expor-se a tudo, sofrer tudo de uma vez e habituar­-se? Mais dia menos dia toda a lembrança se apaga e te surpreendes gargalhando, a vida vibrando outra vez, nova, na garganta, sem culpa nem desculpa. E chegas a pensar: quantas manhãs como esta perdi burramente! O amor é uma doença como outra qualquer. E é verdade. Uma doença ou pelo menos uma anormalidade. Como pode acontecer que, subitamente, num mundo cheio de pessoas, alguém meta na cabeça que só existe fulano ou fulana, que é impossível viver sem essa pessoa? E reparando bem, tirando o rosto que era lindo, o corpo não era lá essas coisas... Na cama era regular, mas no papo um saco, e mentia, dizia tolices, e pensar que quase morro!... Isso dizes agora, comendo um bife com fritas diante do espetáculo vesperal dos cúmulos e nimbos. Em paz com a vida. Ou não. - Ferreira Gullar

+ Poema Sujo turvo turvo a turva mão do sopro contra o muro escuro menos menos menos que escuro menos que mole e duro menos que fosso e muro: menos que furo escuro mais que escuro: claro como água? como pluma? claro mais que claro claro: coisa alguma e tudo (ou quase) um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhas azul era o gato azul era o galo azul o cavalo azul teu cu tua gengiva igual a tua bocetinha que parecia sorrir entre as folhas de banana entre os cheiros de flor e bosta de porco aberta como uma boca do corpo (não como a tua boca de palavras) como uma entrada para eu não sabia tu não sabias fazer girar a vida com seu montão de estrelas e oceano entrando-nos em ti bela bela mais que bela mas como era o nome dela? Não era Helena nem Vera nem Nara nem Gabriela nem Tereza nem Maria Seu nome seu nome era… Perdeu-se na carne fria perdeu na confusão de tanta noite e tanto dia - Ferreira Gullar

+ No ombro do planeta (em Caracas) Oscar depositou para sempre uma ave uma flor (ele não fez de pedra nossas casas: faz de asa). No coração de Argel sofrida fez aterrissar uma tarde uma nave estelar e linda como ainda há de ser a vida. (com seu traço futuro Oscar nos ensina que o sonho é popular). Nos ensina a sonhar mesmo se lidamos com a matéria dura: o ferro o cimento a fome de humana arquitetura. Nos ensina a viver no que ele transfigura: no açúcar da pedra no sonho do ovo na argila da aurora na pluma da neve na alvura do ovo. -Oscar nos ensina que a beleza é leve. - Ferreira Gullar

+ Você percebe quando o poema está bem escrito, mas não é poesia. - Ferreira Gullar

+ Você vai rir se lhe disser que estou cheio de flor e passarinho... Que nada do que amei na vida se acabou: e mal consigo andar tanto isso pesa - Ferreira Gullar

+ Toada à toa A vida, apenas se sonha que é plena, bela ou o que for. Por mais que nela se ponha é o mesmo que nada por. Pois é certo que o vivido - na alegria ou desespero - como o gás é consumido... Recomeçamos de zero. - Ferreira Gullar

+ Uma voz Sua voz quando ela canta me lembra um pássaro mas não um pássaro cantando: lembra um pássaro voando - Ferreira Gullar