Lerdeza

A frase que o Everton mais ouvia da mãe era “levanta e vai buscar”, geralmente seguida de um epíteto, como “seu preguiçoso” ou, pior, “lerdeza”. Porque o que o Everton mais fazia, atirado no sofá na frente da TV na sua posição de costume (que a mãe chamava de “estrapaxado”), era pedir para lhe trazerem coisas. Uma Coca. Uns salgadinhos…

  • Levanta e vai buscar!

  • Pô, mãe.

  • Lerdeza!

O Everton já estava com quinze anos e era uma luta convencê-lo a sair do sofá e ir fazer o que os garotos de quinze anos fazem. Correr. Jogar bola. Namorar. Ou pelo menos ir buscar sua própria Coca.

  • Esse menino um dia ainda vai se fundir com o sofá…

Everton não queria outra coisa. Ser um homem-sofá. Um estofado humano, alimentado sem precisar sair do lugar. E sem tirar os olhos da TV. E como era filho único, e insistente, sempre conseguia que lhe trouxessem o que pedia. Quando não era a mãe, sob protestos (“Toma, lerdeza, mas é a última vez”) era Marineide, a empregada de vinte e poucos anos cujo decote era a única coisa que fazia o Everton desviar os olhos da TV, e assim mesmo por poucos segundos.


Um dia, estrapaxado no sofá, o Everton se deu conta de que estava sozinho em casa. A mãe tinha saído, o pai estava no trabalho, a Marineide de folga, e ele sem ninguém para lhe trazer uma Coca, uns chips de batata e uns Bis. Levantar-se e ir buscar estava fora de questão.

Fechou os olhos e concentrou-se. Concentrou-se com força. Depois de alguns minutos, ouviu ruídos vindo da cozinha. A geladeira abrindo e fechando. Uma porta de armário abrindo e fechando. Depois silêncio. Quando abriu os olhos, a Coca, os chips e os Bis pairavam no ar, à sua frente. Ele só precisou estender a mão. No dia seguinte, Everton testou seu poder recém-descoberto na Marineide, que até hoje não sabe como a sua blusa desabotoou sozinha e seu soutien simplesmente voou longe daquele jeito, e logo na frente do menino. Everton também acendeu a TV e mudou de canais sem precisar usar o controle remoto, e fez um vaso voar pela sala só com a força do seu pensamento. Apagou a TV e ficou, atirado no sofá, refletindo sobre o que significava aquilo. Ele era um fenômeno. Tinha um poder único - fazia as coisas acontecerem apenas pela sua vontade. Contaria aos pais, claro. Eles poderiam ganhar dinheiro com seu poder. O pai saberia como. Ele se transformaria numa celebridade. Cientistas do mundo inteiro o procurariam, sua capacidade extraordinária seria usada em benefício da humanidade. No combate ao crime, por exemplo. Nas comunicações. Na medicina a distância.


E se aquilo fosse, de alguma forma, um poder religioso? Até onde a revelação do seu dom milagroso seria um sinal de que ele tinha uma missão a cumprir na Terra? Até onde aquilo o levaria? Fosse o que fosse, uma coisa era certa. Ele teria que sair do sofá.


  • Mãe.

  • Ahn?

  • Eu quero daquelas coisinhas de queijo. E uma Coca.

  • Levanta e vai buscar.

  • Pô, mãe.

  • Tá bem. Mas esta é a última vez.

E já a caminho da cozinha:

  • Lerdeza!


Luis Fernando Verissimo

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