VIRGEM MORTA

Lá bem na extrema da floresta virgem, Onde na praia em flor o mar suspira… Lá onde geme a brisa do crepúsculo E mais poesia o arrebol transpira… Nas horas em que a tarde moribunda As nuvens roxas desmaiando corta, No leito mole da molhada areia Deitem o corpo da beleza morta. Irmã chorosa a suspirar desfolhe No seu dormir da laranjeira as flores, Vistam-na de cetim, e o véu de noiva Lhe desdobrem da face nos palores. Vagueie em torno, de saudosas virgens Errando à noite, a lamentosa turma… E, entre cânticos de amor e de saudade, Junto às ondas do mar a virgem durma. Às brisas da saudade soluçantes Aí, em tarde misteriosa e bela, Entregarei as cordas do alaúde E irei meus sonhos prantear por ela! Quero eu mesmo de rosa o leito encher-lhe E de amorosos prantos perfumá-la… E a essência dos cânticos divinos No túmulo da virgem derramá-la. Que importa que ela durma descorada E velasse o palor a cor do pejo? Quero a delícia que o amor sonhava Nos lábios dela pressentir num beijo. Desbotada coroa do poeta! Foi ela mesma quem prendeu-te flores! Ungiu-as no sacrário de seu peito Inda virgem do alento dos amores!… Na minha fronte riu de ti, passando, Dos sepulcros o vento peregrino… Irei eu mesmo desfolhar-te agora Da fronte dela no palor divino!… E contudo eu sonhava! e pressuroso Da esperança o licor sorvi sedento! Ai! que tudo passou!… só resta agora O sorriso de um anjo macilento!

Ó minha amante, minha doce virgem, Eu não te profanei, tu dormes pura: No sono do mistério, qual na vida, Podes sonhar ainda na ventura. Bem cedo, ao menos, eu serei contigo — Na dor do coração a morte leio… Poderei amanhã, talvez, meus lábios Da irmã dos anjos encostar no seio… E tu, vida que amei! pelos teus vales Com ela sonharei eternamente… Nas noites junto ao mar e no silêncio, Que das notas enchi da lira ardente!… Dorme ali minha paz, minha esperança, Minha sina de amor morreu com ela, E o gênio do poeta, lira eólia Que tremia ao alento da donzela! Qu’esperanças, meu Deus! E o mundo agora Se inunda em tanto sol no céu da tarde! Acorda, coração!… Mas no meu peito Lábio de morte murmurou: — É tarde! É tarde! e quando o peito estremecia Sentir-me abandonado e moribundo!?… É tarde! é tarde! ó ilusões da vida, Morreu com ela da esperança o mundo!… No leito virginal de minha noiva Quero, nas sombras do verão da vida, Prantear os meus únicos amores, Das minhas noites a visão perdida… Quero ali, ao luar, sentir passando Por alta noite a viração marinha, E ouvir, bem junto às flores do sepulcro, Os sonhos de su’alma inocentinha. E quando a mágoa devorar meu peito… E quando eu morra de esperar por ela… Deixai que eu durma ali e que descanse, Na morte ao menos, sobre o seio dela!


Álvares De Azevedo